Elas Periféricas: a importância do fortalecimento institucional e de acesso a recursos para organizações sociais lideradas por mulheres negras

por Guiné Silva
Fundação Tide Setubal

 

 

As mulheres negras nas periferias brasileiras enfrentam um cenário marcado por desigualdade social, racial e de gênero que as colocam em uma posição de extrema vulnerabilidade. Para construir uma sociedade mais justa, é necessário considerar essas desigualdades e atuar para reduzir as barreiras que limitam suas oportunidades e direitos. 

A partir deste contexto, apoiar as mulheres negras e suas iniciativas nas periferias do Brasil é uma responsabilidade que cabe a toda a sociedade. Quando promovemos a equidade e a justiça social para mulheres negras, contribuímos para uma sociedade mais justa e decolonial, onde cada indivíduo, independentemente de sua origem, tem a oportunidade de crescer, se desenvolver e viver com dignidade.

O edital Elas Periféricas foi criado em 2018 sob este contexto.  Com ênfase em questões de gênero, raça e território e a partir de um processo de imersão na estrutura das organizações voltadas e lideradas por mulheres negras nas periferias brasileiras, ele busca promover um impacto social significativo e duradouro.  

Os desafios das organizações lideradas por mulheres negras 

As organizações que participaram dessa experiência têm origem na própria comunidade, exercem  um papel fundamental na promoção da justiça social e na construção de oportunidades em ambientes que historicamente têm acesso restrito a recursos e apoio. Apesar disso, a escassez de financiamento e a centralização de recursos em grandes institutos e fundações filantrópicas têm limitado a sustentabilidade e a eficácia dessas iniciativas. Para ampliar o impacto e fortalecer essas organizações, é essencial que as instituições filantrópicas promovam a democratização e descentralização de recursos, historicamente concentrados em projetos e organizações sociais mais estruturadas na região sudeste do país. 

As organizações lideradas por mulheres negras nas periferias enfrentam numerosos desafios estruturais. Em geral, essas lideranças surgem da experiência própria de enfrentar a desigualdade e a exclusão social, o que lhes dá uma perspectiva única e uma compreensão profunda das necessidades locais. Entretanto, a falta de recursos para capacitação, infraestrutura e formalização, limita o alcance e a sustentabilidade de suas iniciativas. O Elas Periféricas trata os desafios apresentados por essas organizações como janelas de oportunidades.

Fortalecimento institucional para organizações periféricas 

Fortalecer institucionalmente essas organizações significa investir em suas bases administrativas e operacionais, promovendo a estabilidade financeira e capacitando suas lideranças. Com isso, elas podem estruturar planos de ação a longo prazo, atrair mais recursos e ampliar seu impacto. 

Com frequência, as exigências e os processos burocráticos do financiamento filantrópico tornam-se um obstáculo para pequenas organizações sociais. Muitas vezes, os editais e as chamadas para apoio possuem critérios complexos e excludentes, como a necessidade de documentos detalhados, relatórios extensivos e comprovações de impacto no curto prazo. Para organizações negras e de periferia, que frequentemente possuem estrutura administrativa frágil, essa burocracia pode tornar o acesso aos recursos extremamente desafiador. 

Essa complexidade burocrática acaba reforçando a desigualdade no acesso a recursos: as organizações maiores e mais estruturadas conseguem superar os desafios burocráticos, enquanto as menores, com menor capacidade técnica, acabam ficando de fora dos processos de financiamento. 

Desta forma, um ciclo vicioso se forma, onde as organizações negras e periféricas têm dificuldades para crescer justamente pela falta de acesso a recursos que os ajudam a se estruturar. Acabam restritas a soluções de curto prazo e respostas emergenciais, em vez de conseguirem implementar mudanças estruturais.

Além disso, em um contexto de desigualdades sociais, raciais e de gênero, as organizações lideradas por mulheres negras enfrentam ainda mais barreiras, como o racismo estrutural e institucional e a desvalorização de suas lideranças no setor social. 

Pela simplificação do financiamento filantrópico

Simplificar o financiamento filantrópico sempre nos pareceu uma diretriz importante para reduzir burocracias desnecessárias, flexibilizar os requisitos de elegibilidade e criar processos mais acessíveis para essas organizações. Adequado às realidades locais, os editais podem causar impactos profundos no fortalecimento do terceiro setor, trazendo uma diversidade maior de organizações e novas perspectivas e soluções criativas para os problemas sociais. 

Para isso, é preciso revisar as políticas de alocação de recursos para garantir que organizações de base, especialmente aquelas destinadas a grupos marginalizados, tenham acesso direto ao financiamento. 

Elas Periféricas: uma proposta de fortalecimento institucional sem burocracia

O Elas Periféricas, realizado pela Fundação Tide Setubal, é uma das poucas iniciativas que adotou medidas para tornar o financiamento mais acessível como, por exemplo, a redução de critérios para candidaturas, a oferta de apoio técnico e o desenvolvimento de um programa de capacitação específico para organizações de pequeno porte. 

Outra prática importante foi a flexibilização de recursos para despesas operacionais e custos fixos, permitindo que as organizações invistam no seu próprio fortalecimento institucional. Iniciativas como essa demonstram que é possível tornar o financiamento filantrópico mais inclusivo e acessível, sem comprometer a transparência ou a prestação de contas. Exemplos como este devem ser multiplicados e aperfeiçoados, incentivando mais doadores a simplificar seus processos e a confiar nas organizações locais para gerenciarem seus recursos com autonomia.

 A adoção de um modelo flexível de prestação de contas que contempla também o apoio a organizações não formalizadas pode ser destacado como um fator de simplificação do apoio. Este modelo de prestação de contas contribui para a promoção de uma relação de confiança,  essencial para o fortalecimento do terceiro setor e para a promoção de um impacto social mais amplo e inclusivo, permitindo que pequenos grupos e movimentos comunitários continuem desempenhando suas funções obrigatórias e transformando o processo de prestação de contas em uma ferramenta de fortalecimento e desenvolvimento institucional.

Entre as contribuições do Elas Periféricas é preciso dizer que a inclusão de organizações lideradas por mulheres negras nas periferias no âmbito das grandes fundações e institutos de financiamento também é uma questão de representatividade e de diversidade. As lideranças dessas organizações trazem perspectivas essenciais sobre a realidade das periferias e sobre as verdadeiras necessidades e aspirações das populações negras e vulneráveis.

Para que a transformação seja real, é essencial que fundações e institutos empresariais reformulem as suas políticas de financiamento, apoiando essas organizações e investindo na diversidade e na descentralização dos recursos. Só assim será possível criar um setor social mais equânime e inclusivo, que reflita e atenda às reais necessidades das comunidades periféricas, promovendo a equidade racial e de gênero como um caminho para o desenvolvimento social.

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Wagner Luciano da Silva, mais conhecido como Guiné Silva, é cientista social pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduado em Gestão de Projetos no Território pelo Centro Universitário Senac. Atua há mais de 20 anos na gestão de programas e projetos sociais em periferias urbanas. Atualmente, coordena a área de Fomento a agentes e causas da Fundação Tide Setubal. 

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