O G20, fórum central para as discussões sobre o futuro da economia global, tem se tornado, cada vez mais, um espaço de disputa por narrativas e influência. Observar a dinâmica do G20, com suas complexas negociações e alianças estratégicas, é compreender as forças que moldam o mundo contemporâneo. Mas, para além dos debates econômicos e das decisões geopolíticas, existe um aspecto fundamental que muitas vezes fica ofuscado: a participação da sociedade civil.
Na última década, o fórum do G20 tem buscado, aos poucos, garantir trilhas de engajamento para que a sociedade civil se envolva no processo de elaboração das recomendações finais elaboradas para os países. Foram criados, por exemplo, o B20 (empresas), o L20 (trabalhadores), o T20 (think tanks) e o C20 (Sociedade civil), sendo este último o canal de engajamento da sociedade civil, incluindo ONGs nos processos do G20.
Essa participação, no entanto, tem sido irregular entre as edições, marcado pelas agendas e prioridades dos governos sede e de seus pares. Na edição passada do G20 Índia, apesar de importantes esforços e resultados do engajamento da sociedade civil, a presidência do primeiro-ministro indiano Modi buscou marcar o protagonismo da Índia e de si próprio como agente do Sul global. Isso limitou tópicos mais sensíveis e críticos para a política interna, como combate a corrupção e democracia. Felizmente, não é o mesmo caso da presidência brasileira.
A edição 2024 do G20, presidida e sediada pelo Brasil, tem sido marcada por um profundo engajamento para garantir participação plena, diversa e profunda da sociedade civil, e de defesa desse mecanismo para legitimar e formular respostas para os desafios globais em diálogo com as populações afetadas por eles.
Um exemplo disso pode ser visto no C20, que é um grupo de engajamento formado por organizações da sociedade civil de todo o mundo, que se organiza em diferentes grupos de trabalho que focam nos principais debates que o G20 daquele ano está priorizando. Esse trabalho se dá em duas etapas principais: a elaboração de recomendações e a incidência política.
Na primeira etapa, especialistas e ativistas se reúnem em grupos de trabalho temáticos para debater os principais desafios da agenda global e formular propostas concretas. Esses grupos de trabalho, que abordam temas como direitos humanos, justiça climática, igualdade de gênero e combate à corrupção, funcionam como verdadeiros laboratórios de ideias, produzindo documentos e posicionamentos que buscam influenciar as decisões do G20.
A segunda etapa, a incidência política, é onde o C20 trabalha para que as recomendações elaboradas cheguem aos líderes do G20 e sejam incorporadas aos documentos e decisões finais. Essa incidência se dá por meio de diversas estratégias, como a organização de eventos paralelos, reuniões com representantes de governos, elaboração de campanhas de advocacy e mobilização da opinião pública.
Tive a oportunidade de vivenciar essa dinâmica intensamente representando o Pacto pela Democracia como co-facilitador do grupo de trabalho 10 do C20, focado nos temas de Governança Democrática, Espaço Cívico, Anticorrupção e Acesso à Justiça. Apenas em nosso grupo, haviam 356 organizações de mais de 20 países distintos. Coordenar as discussões de centenas de organizações, cada uma com suas prioridades e perspectivas, exigiu diálogo, negociação e busca por consensos. Mas, ao final, o grupo conseguiu formular recomendações concretas, demonstrando a capacidade da sociedade civil de contribuir para a construção de soluções para os desafios globais.
Mas essa foi apenas parte do processo. Com as recomendações prontas, vem o momento de “gastar a sola do sapato” para levar essas recomendações para os ouvidos e agendas de autoridades do mundo todo. Mesmo nessas etapas, foi possível observar, em primeira mão, o trabalho proativo e engajado da presidência brasileira para garantir essa escuta.
Um exemplo disso foi a inclusão, nas agendas oficiais do G20, da participação de representantes das diferentes trilhas de engajamento (B20, L20, T20, C20), durante processos-chave de elaboração das recomendações finais. Eu pude presenciar isso diretamente quando, à convite da presidência brasileira e da secretaria executiva do C20, representei a trilha na última reunião oficial do Grupo de Trabalho Anticorrupção do G20, ocorrida em Natal, no mês de outubro.
Na ocasião, foi possível não só apresentar diretamente nossas recomendações para autoridades e diplomatas do mundo todo, mas também ter a felicidade de ver que muitas das recomendações que estávamos trazendo já estavam nas mesas de discussão por iniciativas de incidência que fizemos anteriormente.
O C20 brasileiro é um dos grandes marcos históricos de participação da sociedade civil no G20. Teve um alto número de organizações engajadas, propiciou a recuperação e abertura de novos grupos de trabalho. O C20 brasileiro dobrou o número de grupos de trabalho do C20 indiano, que era 5 e passou a ser 10. Nesta edição, foram abertos diversos canais de engajamento com as autoridades e os espaços de formulações de propostas concretas da sociedade foram consideradas nas discussões oficiais. Isso tem sido possível pela postura do governo brasileiro, mas deve ser destacada também a pujança da sociedade civil organizada no país, que teve um nível de engajamento, pluralidade e compromisso ímpares que fizeram a diferença no processo. Em especial, cabe valorizar o trabalho comprometido da ABONG e da Gestos, as organizações que estão liderando o C20 Brasil de forma comprometida e experiente, mesmo com os desafios desta empreitada.
Mas não foi apenas no C20 que se viu um maior protagonismo das ongs no G20. Outro ponto importante da presidência brasileira foi a criação do G20 Social, uma iniciativa que buscou coordenar as diferentes “trilhas” de engajamento da sociedade civil no G20, como o B20, o L20, o T20 e o próprio C20, para ampliar o diálogo e articulação entre esses diferentes grupos, assim como permitir a incidência, participação e protagonismo de outros movimentos sociais históricos da sociedade civil brasileira, como a APIB, CUT, CUFA e MST, que coordenaram esse grupo de trabalho.
Apesar da boa intenção, o G20 Social enfrentou alguns desafios em sua implementação. A diversidade de agendas e prioridades dos diferentes grupos, a falta de clareza em relação aos seus objetivos e a própria complexidade de organizar um espaço de diálogo tão amplo resultaram em alguns problemas de desorganização e sobreposição de agendas.
No entanto, o G20 Social representou um passo importante na construção de uma participação mais coordenada e articulada da sociedade civil no G20 que deve ser aprimorada para as próximas edições, mas de forma alguma abandonada.
E qual a importância de tudo isso? Por que o engajamento das ONGs no G20 é tão crucial? Em primeiro lugar, porque as ONGs trazem o conhecimento e a experiência de quem trabalha diariamente com os desafios que o G20 se propõe a enfrentar. Sejam os efeitos das mudanças climáticas, a desigualdade social ou erosão democrática, as ONGs estão na linha de frente, lidando com as consequências dessas crises e buscando soluções inovadoras.
Além disso, a participação das ONGs legitima o próprio G20. Em um mundo cada vez mais desconfiado das instituições tradicionais, é fundamental que as vozes da sociedade civil sejam ouvidas e que os cidadãos se sintam representados nas decisões que afetam suas vidas.
Nas semanas finais da presidência brasileira do G20, a cúpula do C20, o G20 Social e a cúpula de líderes do G20 são momentos cruciais. Há uma expectativa palpável de que as recomendações formuladas com ampla contribuição da sociedade civil se reflitam nas decisões finais.
Além disso, a transição para a presidência da África do Sul marca um momento decisivo para consolidar os avanços feitos e garantir que os mecanismos de engajamento civil continuem a evoluir e a influenciar as políticas globais.
A presidência brasileira do G20 em 2024 destacou a importância fundamental da participação da sociedade civil nas discussões globais, demonstrando que sua inclusão vai além de uma formalidade, sendo essencial para a eficácia, legitimidade e alinhamento das políticas com as necessidades humanas globais.
Para assegurar que a participação da sociedade civil não seja vulnerável às flutuações das prioridades políticas de cada país anfitrião, é crucial estabelecer canais de engajamento permanentes e oficiais com diretrizes claras, garantindo que os esforços sejam contínuos e cumulativos. Essa estratégia reforçará o legado do G20 Brasil e assegurará que futuras cúpulas construam sobre essa base, consolidando a participação da sociedade civil como um pilar indispensável na formulação das respostas que os desafios urgentes do planeta demandam.
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André Amaral é formado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e atua como coordenador de articulação de rede do Pacto pela Democracia.
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